Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette,
Delegado de Polícia aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.
A Lei 14.532/23 inclui na Lei 7.716/89 uma norma geral de hermenêutica que indica ao intérprete e aplicador do Direito o alcance e os limites a serem respeitados na exegese de seus dispositivos para a caracterização de racismo ou discriminação (artigo 20 – C).
É relevante a transcrição da normativa em estudo:
Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.
A diretriz acima tem recebido da incipiente doutrina a interpretação de que vem para eliminar qualquer dúvida quanto à inviabilidade de reconhecimento do que se convencionou chamar de “Racismo Reverso”. [1] Dessa forma, usando o exemplo da “Injúria Racial”, ofender um negro com xingamentos tais como “macaco indecente” (sic) constituiria crime de racismo. Mas, por outro lado, ofender um branco com impropérios como “branco azedo indecente” (sic) não constituiria crime de racismo, mas mera Injúria Simples. Na mesma toada recusar vaga de emprego a alguém somente porque a pessoa é branca não constituiria crime de racismo, mas constituiria se a recusa se desse devido à pessoa ser judia. Enfim, o racismo somente existiria em uma espécie de interpretação histórico – retroativa hipotética, abrangendo pessoas e grupos que já sofreram discriminação ao longo da História e são classificados como “minorias” em um amplo sentido (não somente numérico). E mais, que a critério do julgador, sofram “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” derivados de “tratamento ou atitude” que normalmente não seriam dispensados a outros grupos “em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
O disposto no artigo 20 - C ora em estudo se constitui numa norma de hermenêutica que se apresenta na forma de uma espécie de elemento normativo geral ou constante no que diz respeito à abrangência do microssistema criminal da Lei de Racismo. [2] Importa dizer que para a caracterização de qualquer dos crimes previstos na lei sob comento será necessário satisfazer os requisitos do dispositivo em questão.
Parece não restar dúvida de que o intento do legislador é realmente limitar o alcance dos tipos penais da Lei 7.716/89, afastando-os nos chamados casos de “Racismo Reverso”.
E essa tendência do legislador se alimenta em “teorias” ou ideologias identitárias que praticamente são hegemônicas nos meios ditos intelectuais brasileiros e também estrangeiros.
Autores como Silvio Almeida apresentam uma visão do racismo como “estrutural” de modo que a discriminação racial se fundamenta no exercício de poder sobre oprimidos. Sem isso é impossível, segundo o autor, atribuir vantagens ou desvantagens relativas à raça, cor, etnia etc. Os brancos, por exemplo, não teriam um histórico de discriminação racial ou de cor a justificar sua condição como vítimas de racismo. [3]
No mesmo sentido se manifesta Djamila Ribeiro:
Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravização por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a elas. Brancos são mortos por serem brancos? [4]
A mesma autora, em outra obra de sua lavra, faz a seguinte afirmação condizente com a inviabilidade do chamado “Racismo Reverso” e com a visão do racismo como uma estrutura social e não como conduta humana:
“O racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato de vontade de um indivíduo”. [5]
Schucman também considera a impossibilidade do “Racismo Reverso”. Para ela uma pessoa branca não pode ser vítima de racismo por parte de uma pessoa negra. Se ela é maltratada por uma pessoa negra por ser branca, isso constituiria “preconceito e discriminação”, mas não “racismo”. Preconceito e discriminação seriam componentes das relações interpessoais, já o racismo estaria ligado a uma “estrutura social de dominação”. [6]
A autora apresenta aquilo que ela entende por racismo:
Racismo pode ser pensado como uma dominação baseada em uma doutrina que acredita que há uma raça superior e a partir desta doutrina há uma política em que pessoas desta raça têm privilégios e acessos no poder econômico, político, jurídico, ou seja, na estrutura social. Em geral para que haja racismo contra um grupo é preciso que haja uma história de longa duração de dominação de um grupo contra o outro, baseado na ideia de raças superiores e raças inferiores. [7]
Schucman não nega a possibilidade de que brancos venham um dia a ser vítimas de racismo, desde que sejam dominados, discriminados e oprimidos como raça inferior numa futura estrutura social. Para ela os brancos nunca foram escravizados ou dominados na História da humanidade. Cita a escravização de negros e índios e afirma que “nunca houve na história da humanidade um grupo que fez algo próximo a isto com pessoas classificadas como brancas”. [8]
Racismo, segundo a autora, não seria externado em condutas racistas, mas como “uma forma de legitimar as estruturas sociais de poder”. Portanto, “se um grupo não tem poder na estrutura o sujeito deste grupo não consegue praticar racismo”. [9] Traduzindo essa afirmação de Schucman da sociologia e da política para o Direito, chega-se então à conclusão de que a prática de delitos de racismo para um negro, um judeu, um índio contra um branco etc., configuraria a figura do “crime impossível” por impropriedade absoluta do objeto (inteligência do artigo 17, CP).
Não é possível concordar com o arcabouço ideológico que dá origem e sustento ao reducionismo promovido pelo artigo 20 – C da Lei 7.716/89, introduzido pela Lei 14.532/23, alijando da proteção legal categorias inteiras de pessoas e promovendo discriminação injusta, exatamente por meio de um diploma que deveria combater essa espécie de conduta. Além disso, o artigo 20 – C em destaque apresenta péssima técnica jurídica redacional que o torna inconstitucional devido ao seu elevadíssimo grau de subjetividade, insegurança jurídica e até mesmo um elemento divinatório embutido em sua estrutura.
É preciso tomar cuidado com eventuais “boas intenções”, as quais muitas vezes são eivadas por um “efeito perverso” embutido capaz de perturbar a ordem social ao invés de ocasionar pacificação. Como alerta Boudon, a uma decisão refletida e bem intencionada pode estar associada uma consequência indesejável e até mesmo nociva. [10]
Iniciando pela análise estritamente jurídica da questão, é nítido que a orientação hermenêutica do artigo 20 – C muito mais desorienta do que orienta. Usando a expressão equívoca “grupos minoritários” já abre uma enorme margem de interpretação subjetiva para o julgador. Entendemos que por “grupos minoritários” não se estaria referindo a uma questão quantitativa, mas sim a condições de discriminação a que tais grupos seriam normalmente submetidos. No entanto, como já dito, a expressão é dúbia. Ainda que se possa chegar a um consenso sobre esse aspecto de que a condição de “minoritário” se refere à segregação, discriminação ou preconceito e não à simples quantidade. Quais seriam então esses tais grupos que deveriam ser especialmente protegidos pela Lei de Racismo, e pior, quais seriam os grupos que não deveriam receber a especial proteção da Lei 7.716/89? Quais seriam “os eleitos” e quais seriam os “enjeitados” ou “alijados” do manto protetor da lei? A lei deveria responder. Não responde. Fica a critério subjetivo do julgador. Mas, sendo característica de toda lei a generalidade, o correto não seria estabelecer grupos privilegiados e grupos alijados, mas abranger de maneira igualitária todas as pessoas, todos os seres humanos que não merecem nunca ser discriminados em razão de raça, cor, origem, etnia, religião ou seja lá o que for. A discriminação (positiva ou negativa) não se justifica no que diz respeito à proteção jurídica conferida aos seres humanos neste aspecto, ainda mais diante do artigo 3º., IV, CF que proíbe os preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação, obviamente não se dirigindo a norma constitucional ao grupo X ou Y, mas a todos, indiscriminadamente.
Cabe indicar a definição de lei apresentada por Maciel:
“Norma escrita, geral, abstrata, permanente, garantida pelo Poder Público, aplicável por órgãos do Estado enquanto não revogada” (grifo nosso). [11]
Essas lições sobre a generalidade da Lei são muito antigas e tradicionais. Papiniano afirma que “a lei é uma norma ‘geral’ ou comum (“Lex est commune praeceptum”) e Ulpiano chama a atenção para o fato de que a lei “é uma regra estabelecida não em vista de um caso individual, mas de todos os casos da mesma espécie” (“Jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur”). [12]
A generalidade da lei, neste contexto, nos remete ao “Princípio da Igualdade” e à excepcionalidade de tratamentos diferenciados, os quais devem ser sempre muito bem justificados. No escólio de Mello:
As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (grifos no original). [13]
Por obviedade não é interesse “prestigiado pela Constituição” que grupos inteiros fiquem desprotegidos contra práticas racistas, somente com sustento em ideologias, idiossincrasias e subjetivismos identitários mais ou menos acatados no debate público.
Vale mencionar a crítica feita por Costa, David e Bretz quanto à “despropositada” terminologia “minorias”:
“O objeto da proteção legal – e a sua melhor exegese – deve-se nortear pela necessidade de se construir um país livre de qualquer tipo de intolerância entre todos os seus habitantes, não reduzindo isso ao rótulo de minorias”. [14]
E, além disso, como já destacado, não é somente de puro subjetivismo e redação aberta que sofre o artigo 20 – C da Lei 7.716/89 na forma dada pela Lei 14.532/23. Ao final, exige o dispositivo um poder divinatório sobre - humano do magistrado. Ele deve, por assim dizer, adivinhar se o “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” seria ou não “usualmente dispensado” a dado grupo social em razão da “cor, etnia, religião ou procedência”. Usamos aqui da hipérbole para conferir ênfase à exigência legal de um prognóstico a ser realizado pelo julgador sem qualquer parâmetro legalmente estabelecido. Uma norma de orientação hermenêutica que traz ao mundo jurídico, no microssistema dos crimes de racismo, um elemento normativo geral ou constante totalmente indeterminado não pode prosperar diante do “Princípio de Estrita Legalidade”, o qual exige redações que tenham um sentido semanticamente muito bem determinado e estabelecido.
Na lição de Ferrajoli, mister se faz que o legislador obedeça criteriosamente "uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim" lhe prescreve "o uso de termos de extensão determinada na definição das figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como predicados 'verdadeiros' dos fatos processualmente comprovados”. Em suma, não basta que o legislador produza leis de acordo com o processo legislativo, mas é imprescindível que ele produza leis claras, taxativas, com descrições objetivas. É essa característica de determinação segura do conteúdo da lei penal que lhe empresta validade sob o aspecto “substancial”. [15]
E no caso do artigo 20 – C da Lei de Racismo, com a redação dada pela Lei 14.532/23 não estamos tratando de um tipo penal específico, mas de uma disposição legal hermenêutica que se espraia para todos os diversos tipos penais previstos na Lei 7.716/89. É como se legislador tivesse inoculado os crimes da Lei de Racismo com um vírus letal que propaga a violação do “Princípio da Legalidade Estrita” e, consequentemente, contamina todo o diploma com inconstitucionalidade aguda. A interpretação dúbia do dispositivo tem o potencial evidente de ocasionar terríveis situações de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva.
Quanto à ideologia que permeia e dá sustento à redação do artigo 20 – C, deve-se concordar com a assertiva de que não existe “Racismo Reverso”. Realmente isso não existe. O que existe é simplesmente “Racismo” quando se tem preconceito, se discrimina ou segrega quem quer que seja. A expressão “Racismo Reverso” é uma espécie de masturbação intelectual que se lastreia em uma ilusão.
Não é correto e não corresponde à realidade palpável a afirmação de que o racismo não se opera entre pessoas, mas decorre da “estrutura da sociedade”. O racismo, como qualquer ação humana, é algo que opera “de pessoas sobre pessoas”. [16] Estruturas e instituições são abstrações incapazes de ação ou omissão e quando se atribui a elas no discurso alguma conduta, isso se faz de forma obviamente figurada ou analógica.
Como é possível que uma construção intelectual tão apartada do real se imponha e seja capaz de exercer grande influência no mundo jurídico a ponto de fundamentar a redação de um importante artigo de lei?
É preciso trazer à discussão o conceito de “estrutura de plausibilidade”, segundo consta elaborado pelo sociólogo Peter L. Berger. A “estrutura de plausibilidade” consiste em “estruturas de pensamento aceitas por uma cultura específica de forma geral e quase inquestionável”. [17]
Em nosso ambiente de tolerância intolerante ou de tolerância seletiva ou repressiva (Marcuse) [18], torna-se difícil fugir dos influxos de uma hegemonia intelectual, cultural, social e política que relega ao ostracismo ou ao moderno “cancelamento” todos aqueles que ousem, ainda que no mais mínimo detalhe, destoar de suas ideias. Não é difícil acomodar-se e ceder a essas influências e pressões seja por ações ou, no mínimo, pelo engolfar de uma “espiral de silêncio” que intimida o dissenso, [19] criando, desta forma, uma “estrutura de plausibilidade” para certas ideologias praticamente intocáveis.
Vivemos, como aduz Carson, sob o signo de uma “nova tolerância contemporânea” que é “inerentemente intolerante”.
Não enxerga as suas próprias falhas, pois possui uma atitude de superioridade moral; não pode ser questionada, pois se tornou parte da estrutura de plausibilidade do mundo ocidental. Pior ainda, essa nova tolerância é socialmente perigosa e, com certeza, intelectualmente debilitante. Até o bem que deseja realizar é feito melhor de outra maneira. [20]
E prossegue o autor:
Longe de promover a paz, a nova tolerância está se tornando cada vez mais intolerante, fomentando a miopia moral, provando ser incapaz de engajar-se em discussões sérias e competentes sobre a verdade, deixando males pessoais e sociais inflamarem e permanecendo cega às percepções políticas e internacionais do nosso perfil cultural tolerante. [21]
Em meio a esse clima não é difícil entender como e por que o legislador cede facilmente a uma visão excludente identitária numa lei que deveria primar pela inclusão, pela igualdade e pela não discriminação. Não é difícil compreender como é incapaz de levantar-se e impedir que normas discriminatórias acabem criando um novo clima de ódio e conflito antes inexistente ao invés de contribuir a lei, como deveria, para a paz social. Essa incapacidade de se levantar e fazer a crítica necessária não é apanágio do legislador, mas também do vulgo e dos intelectuais e juristas que corriqueiramente não têm pudores quanto a “sacrificar coragem e princípios no altar do medo”. [22]
Como este autor e este texto não se dobram a essas miudezas, seguimos na crítica ao embasamento sociológico e político do artigo 20 –C da Lei 7.716/89 com redação dada pela Lei 14.532/23.
Não há como discordar do fato de que o Racismo é tão somente uma desastrosa “construção social” que tem seus fundamentos (se é que se pode usar essa palavra) em pseudociência, falsa antropologia, falsa psicologia, falsa biologia, falsa genética etc.
Entretanto, como toda “construção social”, ele é erigido e sustentado, não por estruturas abstratas, mas por pessoas reais que, desgraçadamente, o incorporam. Essa incorporação se manifesta em práticas e preconceitos geradores de discriminação negativa, segregação e opressão em geral. É desse caldeirão de ações humanas que realmente emergem estruturas e até instituições jurídicas (v.g. a escravidão, o apartheid) opressivas, dominadoras, exploradoras e cruéis.
Mediante essa reflexão sobre a origem subjetiva do Racismo e de qualquer “construção social” se pode perceber a evidência de que o Racismo consiste, em primeiro lugar e plano, no tratamento intersubjetivo, na percepção distorcida do “outro”, não sendo possível dar ares de complexidade a uma simplificação indevida que reduz o Racismo ao seu produto final como constructo e estrutura social, ocultando ou olvidando deliberadamente seus antecedentes que, longe de serem contingentes, são absolutamente necessários e constitutivos. A dominação é o resultado final de todo um processo racista que tem início no indivíduo humano e pode atingir qualquer categoria de pessoas, não importando seu “status” social momentâneo ou mesmo ao longo da História. Tanto é fato que, por exemplo, a alegação tão comum de que os brancos nunca foram oprimidos por outros povos brancos ou negros e mesmo escravizados é totalmente falsa. E a noção do escravizado como inferior ou subalterno, seja por questões de origem, política, cultura etc., é também uma constante. O Racismo marcado pela relação socialmente construída entre superior e inferior é uma constante histórica e nem sempre esteve voltada somente para determinados povos. Como observa com acerto Banton: “Sempre houve uma tendência nas pessoas para preferirem as da sua ‘própria espécie’ e serem desconfiadas relativamente aos estranhos”. [23] Na mesma senda se manifesta Mattéi, chamando a atenção para as raízes da palavra “bárbaro” na Grécia, associando as pessoas assim classificadas a “uma fala rude, brutal e ininteligível”, uma espécie de “balbucio” ou “barbarophonos” (“aquele que tartamudeia”). [24] Ora, isso nada mais é do que um julgamento de superioridade dos gregos com relação aos chamados povos bárbaros, praticamente assemelhados a animais que mal podem se comunicar pela linguagem. Somente uma visão histórica míope, provinciana e epocal é capaz de reduzir a submissão à dominação a certos povos (negros e índios, por exemplo), afastando brancos dessa realidade sempre presente.
Como ensina N’Diaye:
No curso das suas numerosas guerras de conquista – por exemplo as guerras levadas a cabo por Júlio César -, reduziram a escravos um número considerável de prisioneiros, subjugados, por meio de armas ou “raptados” nas suas longínquas colônias. Na sua maioria, eram ditos de “raça” branca. A Roma Antiga inaugurou o recurso à escravatura em larga escala para a produção de mercadorias. Chegará a haver três milhões de escravos em Itália, ou seja, quase 30 por cento da população. A revolta de Espártaco, glorificada pelo cinema, custou a vida a dezenas de milhares de escravos. Após um combate feroz, o general Crasso imortalizou o seu nome ao mandar crucificar dez mil escravos ao longo da Via Ápia, de Nápoles a Roma. (...).
Até a tomada de Constantinopla pelos turcos, os “eslavos” – nome dado pelos árabes muçulmanos aos prisioneiros brancos europeus – foram bastante numerosos no mercado de escravos. [25]
Antes de escrever publicamente, como fez a autora supra mencionada, Lia V. Schucman, que os brancos “nunca foram escravizados” e que “nunca houve algo próximo à escravidão e exploração imposta aos negros e índios a povos classificados como brancos”, é preciso livrar-se dos “manuais” levianos e dos lugares comuns para efetivamente estudar obras que tragam a história humana com base em pesquisa de qualidade e fontes primárias. E o mesmo vale para as ilações de Silvio Almeida e Djamila Ribeiro. Vale transcrever a exposição de Hughes:
Mas não há mal tão grande que não possa ser exagerado e este tornou-se o projeto de recentes afrocentristas, que desejam inventar uma espécie de história medicinal em que toda a culpa pela invenção e prática da escravidão negra é deposta na porta dos europeus. Isso é profundamente não – histórico, mas está se firmando na consciência popular através dos novos currículos.
Houve três grandes revoltas de escravos na história humana. A primeira, chefiada pelo gladiador trácio Espártaco contra os romanos, ocorreu em 73 a.C. A terceira foi na década de 1790, quando o grande revolucionário negro Toussaint l’Ouverture e seu exército de escravos tomaram o controle de São Domingos dos franceses, apenas para serem derrotados por Napoleão em 1908. Mas a segunda ficou a meio caminho entre essas duas, no meio do século IX d.C., e é menos documentada do que elas. Sabemos que os insurgentes eram negros; que os califas abássidas muçulmanos do Iraque os tinham trazido da África Oriental para trabalhar, ao milhares, nas salinas do delta do Tigre. Esses rebeldes repeliram os árabes durante quase dez anos. Como os quilombolas do Brasil séculos depois, estabeleceram suas fortalezas nos pântanos. Pareciam inexpugnáveis, e na verdade só foram esmagados pelos muçulmanos em 883. Eram conhecidos como Zani, e legaram seu nome à ilha de Zanzibar, na África Oriental – que, não por coincidência, se tornaria e continuaria a ser o centro do mercado de escravos no mundo árabe até o último quartel do século XIX.
A revolta dos Zani 1100 anos atrás devia lembrar-nos da absoluta falsidade da linha de argumentação hoje em moda que tenta sugerir que a escravização de negros africanos foi invenção de brancos europeus. É verdade que a escravidão estava inscrita na base do mundo clássico ; a Atenas de Péricles era um Estado escravagista, e também o era a Roma de Augusto. A maioria de seus escravos era de brancos caucásicos, e “na Antiguidade, a servidão nada tinha a ver com fisionomia ou cor de pele”. A palavra inglesa slave significava uma pessoa de origem eslava. No século XIII, tinha-se espalhado para outros povos caucásicos subjugados por exércitos da Ásia central: russos, georgianos, circassianos, albaneses, armênios, todos os quais encontravam compradores de Veneza à Sicília e Barcelona, e por todo o mundo muçulmano.
Mas o comércio de escravo africano como tal, o tráfico negro, foi uma invenção muçulmana, desenvolvida por comerciantes árabes com entusiástica colaboração de comerciantes negros africanos, institucionalizada com a mais implacável brutalidade séculos antes de o homem branco aparecer no continente africano, e continuando muito depois que o mercado de escravos na América do Norte foi afinal esmagado.
Historicamente, esse tráfico entre o Mediterrâneo e a África subsaariana começa com a própria civilização que os afrocentristas estão tão ansiosos para reclamar como negra – o antigo Egito. A escravidão africana já estava em pleno vigor muito antes disso: mas no primeiro milênio a.C. o faraó Ramsés II gabava-se de prover os templos com mais de 100 mil escravos, e na verdade é inconcebível que a monumental cultura do Egito pudesse ter surgido sem uma economia escrava. Durante os 2 mil anos seguintes, as economias básicas da África subsaariana permaneceram ligadas à captura, uso e venda de escravos. Esculturas da vida medieval mostram escravos amarrados e amordaçados para sacrifício, e os primeiros exploradores portugueses da África, por volta de 1480, encontraram um grande mercado de escravos estabelecido desde o Congo até Benim. Havia grandes fazendas de escravos no império Mali dos séculos XII e XIV, e todos os abusos e crueldades impostos a escravos no Sul dos Estados Unidos antebellum, incluindo a prática de gerar crianças para venda, eram praticados pelos governantes negros das cidades que os afrocentristas hoje exibem como exemplos saneadores de alta civilização, como Tombuctu e Songai. (...).
Como demonstra Ronald Oliver, o mais eminente dos eruditos africanos e editor geral da História da África, de Cambridge, em oito volumes: tudo o que sabemos do tráfico de escravos e de sua expansão entre os séculos XVI e XIX confirma que ele não poderia ter existido sem a entusiástica cooperação dos Estados tribais africanos, construídos com base no estoque de cativos gerados por suas guerras implacáveis. [26]
A imagem divulgada por ficções de história pop do tipo Raízes – escravistas brancos irrompendo com alfanjes e mosquetes na vidas assentadas de pacíficas aldeias africanas - está muito longe da verdade histórica. Ao longo dos séculos, já havia um sistema de mercado, e seu abastecimento era controlado por africanos. (...).
Ao contrário dos ingleses e americanos, nem os árabes nem os reis africanos no século XIX viam a menor razão humanitária para tomar medidas contra a escravidão. Os mercados de escravos que abasteciam os emirados árabes ainda operavam em Djibouti na década de 50; e desde 1960 florescem na Mauritânia e no Sudão. Ainda há comunicados de escravidão no norte da Nigéria, Ruanda e Níger. Jean – Bedel Bokassa, imperador da República Centro – Africana, a quem Giscard d’Estaing, com sua fome de diamantes, abraçou ostentosamente como seu irmão negro na época da coroação em 1977, mantinha centenas de escravos, e de vez em quando preparava um massacre deles para sua diversão. Se, como certa vez observou H. Rap Brown, a violência é tão americana quanto a torta de maçã, a escravidão parece tão africana como o inhame. (...).
África, Islã e Europa, todos participaram da escravidão negra, impuseram-na, lucraram com suas misérias. Mas no fim só a Europa (aí incluindo a América do Norte) mostrou-se capaz de conceber sua abolição. [27]
A prestidigitação do mal denominado “Racismo Científico” é que é uma novidade próxima a induzir muitos ao erro de sobrepor a relação de dominação ao preconceito, quando, na verdade, tais coisas são simbióticas e é do preconceito inicial que deriva a dominação. A própria ideia de “tipos raciais” que dá origem à chamada “Teoria dos Tipos Raciais” é datada somente de meados do século XIX. [28] Essa “doutrina” (sic) tem início com a publicação do livro de Robert Knox, “The Races of Men” em 1850, secundado pela obra de Josiah Clark Nott, George Robins Giddon e Samuel George Morton, “Types os Mankind” em 1854. [29]
A base, a origem do Racismo está no preconceito e a dominação dos sujeitos passivos desse preconceito é apenas uma consequência. Somente por essa razão já seria desejável reprimir o preconceito venha ele de onde e de quem vier e seja ele contra quem for, reconhecendo o grave fenômeno do racismo e não o afastando por qualquer subterfúgio ou pretexto. Há coisas que devem ser eliminadas e reprimidas em sua mais tenra origem, pois quando se desenvolvem, ainda que timidamente, já se tornam muito mais difíceis de serem combatidas. Portanto, pode haver já Racismo com o preconceito. É o Racismo nascente que, tal qual serpentes filhotes tem tanto ou mais veneno do que as adultas.
Vale mencionar a visão atual ampla de “Racismo” de Banton:
Hoje em dia, as relações raciais têm de ser entendidas não como o resultado de qualidades biológicas, mas como o modo de os indivíduos, em diferentes situações, alinharem com aqueles que percebem como aliados, e em oposição a outros. A maneira como alinham depende de muitos fatores, e não exclusivamente de oposições políticas, interesses econômicos, crenças a respeito da natureza dos grupos sociais e outras circunstancias gerais. Depende também de escolhas humanas, da liderança e da responsabilidade em situações críticas que marcam os princípios de novos períodos na história política. [30]
Retornando aos argumentos de Schucman, que nada mais são do que repetição de lugares – comuns nos discursos que pretendem afastar o que chamam de “Racismo Reverso”, vale destacar um recurso normalmente utilizado para chocar o interlocutor com uma situação posta em analogia aos dias correntes. Como o Racismo seria algo derivado do poder e apenas assim se manifestaria, a autora, na esteira de muitos outros, se vale de uma narrativa que parece convincente. Ela pergunta se seria possível a um Judeu, na época no Nazismo, na Alemanha, ser racista contra um alemão nazista. A resposta óbvia é que não. E dessa resposta a esse exercício mental, a autora acena com a bandeira de vitória intelectual. [31]
De nossa parte também poderíamos criar outro exemplo mais próximo. Seria possível a um negro escravizado no Brasil na época da escravidão, ser racista contra um feitor ou um senhor de escravos? É claro que a resposta é não.
Ora, então o argumento contrário ao chamado impropriamente de “Racismo Reverso” (já explicamos que racismo é racismo), teria consistência? É o que essa espécie de argumentação erística faz parecer, mas se trata de um truque.
O que a autora faz e nós fizemos neste texto, “ad argumentandum tantum”, foi explorar uma das “Falácias de Raciocínio na Indução”, qual seja, a “Falácia da Analogia Falha” ou da “Falsa Analogia”. [32]
Como ensinam Corbett e Connors, “as analogias são especialmente vulneráveis quando se concentram em semelhanças irrelevantes e inconsequentes entre duas situações e ignoram as diferenças pertinentes e significativas” (grifo nosso). Nessas circunstâncias, “a capacidade de persuasão das semelhanças é enfraquecida, ou até totalmente anulada, pelas dissemelhanças”. [33]
As enormes diferenças entre os casos expostos acima e uma situação, por exemplo, de “Injúria Racial” de um negro contra um branco ou de um judeu contra um alemão hoje são de tal monta que inexiste analogia e muito menos equiparação possível. Os casos apontados como esclarecedores são, na verdade, inservíveis, dado seu ingente anacronismo.
Na época do nacional – socialismo alemão, em primeiro lugar, qualquer impropério, crítica mais acerba ou até ofensa que um judeu fizesse a um alemão nazista, nada mais seria do que um “gemido” de revolta diante de uma situação verdadeira. Dissesse o que dissesse a respeito de um alemão nazista, o judeu não estaria dizendo nada demais. No entanto, era-lhe impossível até fisicamente essa prática, pois que resultaria em sua imediata eliminação física. O mesmo se diga de um negro escravizado perante um senhor de escravos ou um feitor, o que ele poderia dizer de mal a respeito de tais pessoas que não fosse plenamente justificado como uma manifestação de revolta e não racismo ou sequer injúria. Mas, novamente o pobre negro jamais teria condições reais de assim agir, a não ser que assumisse a certeza de ser também eliminado fisicamente ou, no mínimo, submetido a surras de chibata no tronco e outras torturas abomináveis e insuportáveis, as quais muitas vezes também o levariam à morte.
Agora, será que qualquer dos dois casos é condizente com a situação de um judeu ou de um negro na atualidade? Não é que se pretenda afirmar que antissemitismo não existe mais na Alemanha ou no mundo e nem que o preconceito de cor seja uma espécie de fantasia, mas as proporções entre as circunstâncias históricas não podem jamais ser comparadas sem uma tremenda ofensa à racionalidade. Só um cego deliberado ou alguém e não parou um pouco para pensar no argumento admitiria a analogia e muito menos a equiparação. Se um judeu ofender com elementos raciais a um alemão hoje em dia, será que poderíamos concordar que, invariavelmente, a ofensa seria justa? O judeu seria eliminado sumariamente? Um negro que ofenda com elementos raciais um branco hoje no Brasil seria arrastado e morto ou torturado, inclusive com apoio de regras institucionalizadas ou consuetudinárias? A tal relação de poder que impede o indivíduo de ser racista era uma realidade naquelas situações (nazismo e escravidão negra), mas não tem absolutamente nada a ver com a realidade social alemã ou brasileira contemporâneas. Tudo não passa de ilusionismo erístico, só não se sabe se praticado deliberadamente por tais pessoas (desonestidade intelectual) ou se fruto de um déficit intelectual criado pela ideologização do pensamento. Acaso nos fosse dado arriscar um palpite, apontaríamos para a segunda hipótese como mais provável, tendo em vista a indigência cultural e intelectual em que vivemos pela opressão ideológica.
Em continuidade lembremos que a falsa superioridade que caracteriza o Racismo não é somente física, intelectual, genética, política, econômica etc. Há a perigosa e insidiosa crença ou sentimento de “superioridade moral”, advinda frequentemente daqueles que se julgam injustiçados ou vitimizados, de tal forma que, em seu pensamento revolucionário, se sentem autorizados a cometer quaisquer ações ou omissões no presente em nome de uma suposta justificação em um alardeado futuro glorioso de igualdade e fraternidade, bem como em razão de um reacionário retorno ao passado para uma espécie de vendeta ou cobrança de dívidas intergeracionais. Na verdade, tudo acaba se reduzindo a uma espécie de vingança perpetrada contra bodes expiatórios eleitos para pagarem os pecados cometidos por outrem. Pior que isso, pecados que mais ou menos remotamente também foram cometidos pela ancestralidade dos atuais revolucionários que se autoproclamam credores incontestáveis.
Essa “superioridade moral” sentida e vivida pelas chamadas “minorias” é que as habilita a se proclamarem isentas diante do Racismo. Mas, o Racismo como manifestação da crença na relação supostamente “justa” (sic) entre superior e inferior, se mostra, sem qualquer pudor, alicerçado nessa “superioridade moral” advinda de anterior inferiorização sofrida. É como se ressentimento e ódio se tornassem virtudes, virtudes estas tão excelentes que seriam capazes de blindar as pessoas de condutas racistas. O sofredor se torna superior por meio da referência ao próprio sofrimento e então, mesmo ao impor sofrimento a terceiros, ainda que inocentes, tem uma certeza de ser virtuoso e imune ao mal.
A criação da figura do “Racismo Reverso” para, em seguida, refutá-lo de maneira indelével, revela-se como uma “construção social” artificial, ou ainda pior, como uma abstração puramente intelectual sem correspondência na realidade, um signo de significado equívoco e sem referente, uma espécie de “espantalho erístico” produzido com o fito de ser derrotado num teatro no qual a aparência de “ter razão” é a única coisa que importa, enquanto a busca dialética pela verdade é desprezada. [34]
Fato é que o “Racismo Reverso” realmente não existe, nunca existiu nem existirá. O que existe desde sempre é o “Racismo” sem adjetivações ou qualificações. Racismo é Racismo, não importando de quem parta e a quem atinja o preconceito, a discriminação negativa, a segregação, a ofensa ou a opressão. Pretender minimizar de qualquer maneira alguma forma de preconceito e suas consequências ou desdobramentos, é abrir as portas para o ódio racial, o conflito e o ciclo vicioso que se segue nessas circunstâncias.
Comungam desse entendimento na área jurídica William Douglas e Irapuã Santana do Nascimento da Silva, cujo texto tomamos a liberdade de transcrever em parte:
Entendemos, com o apoio da doutrina, que o racismo pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa. Daí a impossibilidade de se cogitar uma espécie de reversão. Não é que não exista racismo reverso porque minorias não possam ser racistas: não existe racismo reverso porque todo e qualquer racismo é... racismo! (...).
A discriminação ou o preconceito racial estão presentes em diversas discussões, quando falamos em barreiras imigratórias, por exemplo, que não necessariamente se encaixam na dicotomia “branco x negro”. Com isso, é possível enxergar o racismo como um conceito genérico de prática abusiva contra uma pessoa em virtude de sua origem étnica, que possui diversas maneiras de se apresentar. Não há, pois, qualificação posterior sobre quem tem capacidade para praticar ou sofrer, de modo que se afasta, num exercício de lógica, a ideia do racismo reverso. (...).
Destarte, tomada apenas a perspectiva sociológica, o senso comum e o discurso repetidamente alardeado caem por terra. Passando para a esfera jurídica, a ideia de que negros não podem praticar racismo contra qualquer membro de outra etnia fica ainda mais difícil de defender. (...).
A ideia de que alguma raça ou categoria de pessoas possui um salvo-conduto ou imunidade penal para cometer racismo, além de socialmente deletéria, traz consigo um grande erro de genética tipicamente racista: a ideia de que uma raça é melhor ou pior do que outra. Se alguém admite a ideia de que os negros não podem cometer racismo, isto importa em validar moralmente a ideia de que uma raça é melhor do que a outra. Não é por aí que vamos mudar a sociedade nem extinguir o racismo.
A ideia de que não existe o “racismo inverso” ou “reverso” termina por veicular uma espécie de “autorização” (i)moral para que haja um movimento de refluxo, no qual, ao invés de se extirpar o racismo, permite-se sua prática por aqueles que tradicional, histórica e majoritariamente o sofrem. Contra essa ideia, dois negros podem ser citados: Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela, ambos defensores vigorosos da política de não devolver ódio com ódio, nem racismo com racismo. Ambos defenderam com veemência a superação dos ressentimentos e o começo de um novo tempo onde não se permita que ninguém discrimine o próximo. (...).
Como disse MLK Jr., e disse isso em tempos de grande racismo contra negros nos Estados Unidos, “podemos ter chegado em navios diferentes, mas hoje estamos todos no mesmo barco”. É essa consciência que falta àqueles que querem criar uma salvaguarda e uma defesa teórica de um sentimento, pensamento e ação que todos devemos eliminar: quando uma pessoa, qualquer que seja ela, trata a outra de forma diferente por conta de sua raça ou cor. [35]
E o advento da Lei 14.532/23, com a sua malfadada inclusão do artigo 20 – C no corpo da Lei 7.716/89, obviamente não serviu para alterar a validade do nosso pensamento e nem dos autores supra mencionados. Tanto é fato que William Douglas já se manifestou sobre o tema, criticando fortemente o dispositivo em questão. O autor chama a atenção para dois extremos que consistem em um negacionismo da existência de racismo por um lado e num “identitarismo radical” por outro, ambos prejudiciais ao enfrentamento racional do problema. Com acerto afirma que a luta contra o racismo “deve estar acima de ideologias, ser pauta do Estado, e não de governo, e tarefa de toda a sociedade”. Nesse contexto Douglas chama a atenção para o artigo 20 – C em debate e para a posição de alguns que defendem a tese na inexistência do que chamam de “Racismo Reverso”, em especial de negros contra brancos. [36] O estudioso descarta essa possibilidade, mesmo porque, como nós, reconhece a inconstitucionalidade do artigo 20 – C da Lei 7.716/89 com a redação que lhe foi imprimida pela Lei 14.532/23, incluindo motivações para essa conclusão além daquelas por nós expostas neste texto e com as quais concordamos, e ainda aventando motivação de inconvencionalidade,. Em suas palavras:
O artigo 20-C padece de três vícios de inconstitucionalidade material: 1) violação à independência funcional do juiz; 2) violação à igualdade material (artigo 5º da Constituição); e 3) tratamento desigual e discriminatório entre grupos (artigo 1º, III, e artigo 3º, III e IV, da Constituição).
O princípio da independência é essencial na atividade judicante, o juiz necessita de liberdade para interpretar os casos seguindo a lei e não o interesse de grupos ou ideologias. Assim, ao vincular como o juiz deve interpretar certo dispositivo, sob dado viés identitário/ideológico, o texto atenta contra tal princípio, decorrente do artigo 93 c/c artigos 95 e 127, § 1º, da CF. Em seguida, há violação à igualdade, gerando tratamento desigual e discriminatório, o que atenta contra os arts. 1º, III, 3º, III e IV, e 5º da CF.
Além disso, há um problema de inconvencionalidade, porque a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (adotada pelo Brasil e recentemente promulgada pelo Decreto 10.932/2022) não agasalha essa redução de proteção aos cidadãos que fazem parte das maiorias. Essa redução, trazida pelo artigo 20-C, vai contra o referido tratado. [37]
Em reforço ao afastamento da negação da possibilidade de prática de racismo, por exemplo, de negros contra brancos, Douglas apresenta a reflexão séria e contundente de Risério, [38] em artigo que foi objeto de reações extremadas e tentativas de deslegitimação baseadas não na argumentação e na racionalidade, mas exatamente no uso discriminatório de argumentos “ad hominem” e acusações de “racismo”! É a conhecida técnica autoritária do “efeito silenciador do discurso” descrita por Fiss. [39]
Vale transcrever as menções ao texto de Risério e as conclusões a que se chega quanto ao efeito contrário à pacificação social que se obtém com a imposição legal ideológica do monopólio do racismo para alguns e a isenção absoluta para outros:
Risério explica: "O dogma que reza que pretos são oprimidos e não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca é uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista". O professor prossegue defendendo que "a visão atualmente dominante marcada por ignorância e fraudes históricas argumenta que o racismo branco do passado desculpa o racismo preto do presente. Mas o racismo é inaceitável em qualquer circunstância". Ele cita exemplos de racismo preto antijudaico e contra asiáticos, chamados de "macacos amarelos" (negritos nossos).
Risério acrescenta que "o retorno à loucura supremacista em movimentos negros aparece agora como discurso de esquerda". Essas ideias já estão no Brasil. Muitas postagens nas redes sociais mostram o agravamento desse viés belicoso (negrito nosso).
Se não houver mudança de rumos, e combate à cultura de segregação e do "nós contra eles", terminaremos por importar o grau de tensão racial que há nos EUA.
A Constituição fala explicitamente em solução pacífica das controvérsias e que temos que trabalhar pela união de todos e pela fraternidade. [40]
Como já destacado neste texto, o “supremacismo” branco, negro ou seja lá qual for não precisa necessariamente alicerçar-se em uma alegada superioridade intelectual, física, genética etc., mas pode perfeitamente se apresentar sob as vestes insidiosas da “superioridade moral” daqueles que se julgam no direito de vitimizar porque foram vitimizados, de dominar porque foram dominados ou de oprimir porque foram oprimidos. Nesse quadro o “supremacismo”, que é sempre um terrível vício, acaba se travestindo de virtuosismo. Note-se que esse é um traço psicopatológico comumente descrito em violadores e serial killers que repetem condutas sofridas na infância numa espécie de catarse violenta, aplacando seus ressentimentos e dores. Obviamente esse não é o caminho para a pacificação social e o verdadeiro combate ao racismo. Como muito bem aduz Douglas:
O objetivo de que o amor vença e de que haja pacificação social não ganha nada com a exclusão das maiorias de proteção da lei. Se isso ocorrer, o Estado não terá legitimidade moral para querer impedir a autodefesa, a retorsão imediata e até o exercício da justiça pelas próprias mãos. Seria péssimo dizer para as maiorias que não adianta elas procurarem o Judiciário. [41]
Não é viável defender a tese de que se um grupo de pessoas passa a ser discriminado e oprimido em dado momento histórico em razão da cor, raça, etnia, religião etc., como não há antecedentes históricos relativos a esse grupo, não seria possível reconhecer a prática de Racismo. O Racismo só poderia ser legitimamente reconhecido como existente depois de muitos anos ou até séculos, de forma retroativa. Significa admitir que a tomada de decisão de escravizar, exterminar ou segregar uma dada população por motivos raciais ou qualquer outro preconceito, não seria ainda uma conduta racista acaso inexistisse até então uma perseguição prévia dessa população historicamente reconhecida.
Em um exercício de imaginação, digamos que a “ciência” genética aponte um gene ou alguns genes que tornariam brancos ou pessoas nascidas na Grécia inferiores e prejudiciais à sociedade. Essa tese por si mesma já não seria terrivelmente racista? E pior, o eventual projeto de segregar essas pessoas em guetos e exterminá-las, não seria racista em si? Somente depois das barbaridades serem consumadas e passado longo tempo é que, retroativamente, se poderia falar, com propriedade, em racismo?
Parece que essa espécie de “teoria” ou ideologia peca demais no âmbito da prevenção e da repressão útil e eficaz ao racismo como ameaça medonha à humanidade.
Não há como dar credibilidade à afirmação de que se um indivíduo ou grupo não detém poder, então não consegue cometer Racismo. Nem que seja justamente para obter esse poder e reverter a estrutura racista sem acabar com o racismo, apenas mudando seu direcionamento. Em muitos conflitos étnicos na Europa e na África existe claramente o elemento do preconceito e da crença em superioridade e inferioridade intergrupal (pessoas são comparadas a baratas). Mas, os ditos conflitos nada mais são do que embates para a obtenção do poder que, na verdade, nenhum dos dois oponentes detém de forma absoluta. É claro que depois que um deles se sobrepõe militarmente e politicamente ao outro, essa submissão obtida se converte em exercício de poder geralmente incontrastável e quase sempre se convola em genocídio. Mas até lá não havia poder, mas havia Racismo, havia preconceito e discriminação. É preciso compreender que as sementes do mal já são ontologicamente o próprio mal. O problema é que a ontologia em geral passa bem longe dos intelectos infectados pelas mais diversas ideologias e relativismos que marcam o pensamento (ou a ausência de pensamento) pós – moderno.
Como já afirmamos diversas vezes em outros trabalhos, a Justiça não se faz, virando a injustiça de ponta – cabeça ou, numa fórmula mais elegante em analogia à álgebra, a Justiça não é a injustiça com vetor oposto. Quando se raciocina desse modo o máximo que se faz é inverter o sentido ou a valência da injustiça, não se logrando sua diminuição e muito menos sua desejável eliminação. E é nessa toada que, nos moldes da distopia satírica de Eduardo Mello Guimarães, vamos perdendo espaço para aqueles que o autor denomina pelo neologismo de “idiantes” (“idiotas arrogantes”), os quais parecem que realmente já “dominaram o mundo”. [42]
[1] ZAMBONI, Alexandre. Esclarecimentos jurídicos sobre a nova Lei 14.532/23, que altera o Código Penal e também altera a Leis dos Crimes de Preconceito (7.716/89). Disponível em https://www.instagram.com/p/CnUKTyZOJbj/ , acesso em 11.02.2023. Para o autor o dispositivo do artigo 20 – C teria “jogado uma pá de cal” sobre o assunto do “Racismo Reverso”, o qual não pode mais ser reconhecido no Brasil. [2] Confira-se o texto de Costa, David e Bretz, apresentando o artigo 20 – C enquanto “elemento objetivo descritivo ou normativo do tipo”. COSTA, Adriano de Sousa, DAVID, Ivana, BRETZ, William. Comentários sobre a injúria racista recreativa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-jan-17/comentarios-injuria-racista-recreativa , acesso em 1º.02.2023. [3] ALMEIDA, Silvio. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 25 – 29. [4] RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 41. [5] RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 12. [6] SCHUCMAN, Lia Vainer. É racismo quando um negro discrimina um branco apenas por ter nascido branco? Disponível em https://catarinas.info/e-racismo-quando-um-negro-discrimina-um-branco-apenas-por-ter-nascido-branco/ , acesso em 11.02.2023. [7] Op. Cit. [8] Op. Cit. [9] Op. Cit. [10] BOUDON, Raymond. Efeitos Perversos e Ordem Social. Trad. Analúcia T. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979, “passim”. [11] MACIEL, Getulino do Espírito Santo. Aprendendo Direito – Introdução ao Estudo do Direito. 3ª. ed. Lorena: CCTA, 2001, p. 107. [12] Apud, MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. Volume II. 11ª. ed. São Paulo: RT, 1987, p. 59. [13]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 17. [14] COSTA, Adriano Sousa, DAVID, Ivana, BRETZ, William, Op. Cit. [15] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer “et al.” São Paulo: RT, 2002, p. 305. [16] KAMEL, Ali. Não Somos Racistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 66. [17] BERGER, Peter L. The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion. New York: Doubleday, 1967, “passim”. [18] Tolerância para uns, intolerância para outros. Cf. MARCUSE, Herbert. Crítica da tolerância pura. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, p. 112. [19]NOELLE – NEUMANN, Elisabeth. A Espiral do Silêncio. Trad. Cristian Derosa. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2017, p. 23. [20] CARSON, D. A. A Intolerância da Tolerância. Trad. Érica Campos. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 12. [21] Op. Cit., p. 140. [22] Op. Cit., p. 163. [23] BANTON, Michael. A Ideia de Raça. Trad. António Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 26. [24] MATTÉI, Jean – François. A Barbárie Interior – Ensaio sobre o i – mundo moderno. Trad. Isabel Maria Loureiro. São Paulo: Unesp, 2002, p. 76 – 79. [25] N’DIAYE, Tidiane. O Genocídio Ocultado. Investigação Histórica Sobre o Tráfico Negreiro Árabo – Muçulmano. Trad. Tiago Marques. 3ª. ed. Lisboa: Gradiva, 2020, p. 12 – 13. [26] Cf. OLIVER, Roland. The African Experience. London: Weodemfeld and Nicolson, 1991. Consultado na edição brasileira: OLIVER, Roland. A Experiência Africana – Da Pré – História aos Dias Atuais. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 134 – 148. Com grande quantidade de informações no Capítulo 10 – Senhores e Escravos. [27] HUGHES, Robert. Cultura da Reclamação. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 117 – 120. Além das obras já citadas no corpo do texto de N’Diaye, Oliver e Hughes, quem quiser aprender realmente e não ficar apenas numa espécie de redoma pop leviana sobre a escravidão negra e branca ao longo da História Mundial, recomendam-se também os seguintes trabalhos: LAMBERT, Jean Marie. História da África Negra. Goiânia: Kelps, 2001, “passim”. DAVIS, Robert C. Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos – Escravidão Branca no Mediterrâneo, na Costa da Berbéria e na Itália, de 1500 a 1800. Trad. Leonardo Castilhone. Campinas: Vide Editorial, 2021, “passim”. [28] BANTON, Michael. A Ideia de Raça. Trad. António Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 10. [29]BANTON, Michael, Op. cit., p. 14. Para quem quiser conferir as obras seminais citadas: Cf. KNOX, Robert. The Races of Men – A Fragment. Philadelphia: Lea & Blanchard, 1850, “passim”. Cf. NOTT, Josiah Clark, GIDDON, George Robins, MORTON, Samuel George. The Races of Men – Ethnological Researches based upon the Ancient Monuments, Paitings, Sculptures and Crania of Races and upon their Natural, Geographical, Philological and Biblical History . Philadelphia: J. B. Lippincott & Company, 1854, “passim”. [30] BANTON, Michael, Op. Cit., p. 17. [31] Cf. SCHUCMAN, Lia Vainer, Op. Cit. [32] CORBETT, Edward P. J., CONNORS, Robert J. Retórica Clássica para o estudante moderno. Trad. Bruno Alexander. Campinas: Kírion, 2022, p. 102 – 103. [33] Op. Cit., p. 103. [34] SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de ter Razão. Trad. Alexandre Krug e Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24. A retórica (no aspecto “erístico”) apresentada por Schopenhauer é explicitada em vários estratagemas. Um deles ficou conhecido como “Técnica do Espantalho”, consistindo em expandir uma ideia alheia, criando um opositor aparentemente potente, quando, na verdade, nada há ou muito pouco a combater. A vitória no debate ou a superação do argumento do opositor é então apresentada como uma grandiosa conquista, quando, na realidade, não passa de uma bravata. [35] DOUGLAS, William, SILVA, Irapuã Santana do Nascimento da. Não existe monopólio sobre racismo, tampouco o “racismo reverso”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-31/opiniao-nao-existe-monopolio-crime-racismo , acesso em 14.02.2023. [36] DOUGLAS, William. Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o “racismo reverso”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-jan-21/william-douglas-todo-racismo-racismo-lei-143522023 , acesso em 14.02.2023. [37] Op. Cit. [38] Op. Cit. [39]FISS, Owen M. A Ironia da Liberdade de Expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 48. O autor defende a tese coerente de que numa organização democrática não é possível permitir que o discurso de um grupo possa “soterrar” o de outro. [40] DOUGLAS, William, Op. Cit. Para acesso ao texto original de Risério: RISÉRIO, Antonio. Racismo de Negros Contra Brancos Ganha Força com Identitarismo – Sob discurso antirracista, o racismo negro se manifesta por organizações supremacistas. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/racismo-de-negros-contra-brancos-ganha-forca-com-identitarismo.shtml , acesso em 14.02.2023. [41] DOUGLAS, William, Op. Cit. [42] GUIMARÃES, Eduardo Mello. Os Idiantes – Como os idiotas – ignorantes dominaram o mundo. São Paulo: Poligrafia, 2021.
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